KANINDÉ

Senhor da paz

Ao enfrentar uma turbulência fortíssima num voo entre Suriname e Brasil, o indígena Almir Narayamoga Suruí, 38, apelou para a proteção de Siwagoti, espírito dos ventos fortes do seu povo. Solidário, lembrou-se ainda de pedir ajuda para um amigo que o acompanhava na viagem.

De volta à aldeia, contou a história ao pai, Marimop. Todo orgulhoso, relatou que na hora do desespero não se esqueceu do companheiro. Em tupi-mondé, língua dos suruís, o pai de Almir perguntou: “E por que você não pediu ajuda para o avião inteiro?”.

O episódio ilustra bem o ensinamento que há tempos guia a luta de Almir na preservação da floresta – e de sua gente. “Meu pai me ensinou que não basta lutar só por mim, por minha família, tem que ser pelo povo todo”, conta, emocionado.

Eleito chefe-maior do povo suruí, o indígena está à frente da Metareilá (significa “lugar de organizar”), associação que defende os direitos de um povo que vive em conflitos constantes com madeireiros da região. Por combater a venda ilegal de madeira, o líder suruí sofre constantemente ameaça de morte.

Os suruís vivem em 25 aldeias espalhadas pela Terra Sete de Setembro, demarcada numa área de 248 mil hectares. Depois de quase ter sido dizimada por uma epidemia de gripe após o contato, em 1969, a população baixou de cerca de 5.000 a pouco menos de 300.

Hoje calculam 1.350 suruís. “Somos sobreviventes”, diz Almir, com os olhos mareados ao lembrar que os mortos daqueles anos não foram enterrados.

Menino ainda, Almir deixou a aldeia e foi estudar na cidade. O pai dizia que o filho estava “caçando para o povo”. “Continuo caçando”, emenda o guerreiro com voz suave, sem levantar o tom de voz.

Aos 17 anos, ele já despontava como uma jovem liderança indígena suruí. Não tardou a entrar na militância ambiental. Entre ambientalistas, encarou forte preconceito: os suruís eram chamados de “índios madeireiros”.

A relação entre madeireiros e suruís tem origem nos anos 1980, década em que conquistaram a demarcação de seu território. “Na época, os suruís foram em busca de uma política de sustentabilidade, e a Funai falou que a gente tinha terra muito rica, podia tirar madeira”, conta.

Sua primeira missão era justamente romper com esse pacto do passado. Tinha que convencer os suruís envolvidos com a venda ilegal de madeira de que era preciso valorizar a floresta em pé – ou cuidar da terra, como diziam os velhos da aldeia, insatisfeitos com o desmatamento no território

Na guerra da conscientização ambiental, encontrou a etnoambientalista Ivaneide Bandeira Cardozo – Neidinha. Logo se apaixonou pela militante veterana. “Ela é minha mulher e parceira, na tranquilidade e na guerra”, diz Almir, que é também casado com outra branca, seguindo a tradição de poligamia de seu povo.

Ciência e tradição

Em 1999, o jovem líder indígena desenvolve o plano de gestão do território suruí. Nada de planejar para quatro ou cinco anos, tempo que diz só servir para o ciclo eleitoral da sociedade não indígena. Para projetar o futuro de seu povo, o planejamento suruí atinge cinco décadas.

Aliado a Kanindé, uma das ousadias do plano é unir o conhecimento científico dos pesquisadores com a sabedoria tradicional dos suruís, criando uma nova metodologia. Surge o primeiro plano de gestão de um território indígena, que tem hoje o projeto do Carbono Suruí.

Nem as armas high-tech foram dispensadas na luta do líder indígena. Em 2007, em viagem pela Califórnia (EUA), conseguiu uma reunião com a empresa Google Earth. Mas tinha só 30 minutos para falar (e ser traduzido). Parecia uma batalha vencida.

O indígena não desprezou o tempo diminuto, desatou a contar sobre a história de seu povo e o plano de gestão do território suruí. O encontro, então agendado para durar meia hora, rendeu quatro horas de conversa. No dia seguinte, o jornal New York Times publicava reportagem sobre a parceria da empresa com o povo suru

Com a repercussão, a saga dos suruís ganhou o mundo. Almir visitou 33 países, encontrou outras lideranças internacionais, como o príncipe Charles e Bill Clinton. Por onde passa, perguntam sobre a parceria com o Google. “Mas, antes de falar disso, falo sobre a história e a luta de meu povo.”

Chamado de segundo Chico Mendes pela revista Smithsonian, Almir rebate o rótulo rapidamente, sem perder a calma: “Não quero ser Chico Mendes, não, ainda mais morto”, diz enquanto é observado ao longe por guardas da Força Nacional, que o escoltaram durante os dias de visita da reportagem, período em que as ameaças contra os suruís ficaram acirradas.

Com voz suave e sorriso fácil, Almir conta que não deixa de dizer o que pensa. Certa vez, num encontro que reunia indígenas e a sociedade envolvente, um branco disse: “Esses aqui são os meus índios”. Almir não deixou por menos e sem alterar a voz retrucou: “Vou então apresentar meus brancos, estão todos patenteados”.

Uma das palavras que o guardião da floresta mais usa ao narrar sua trajetória é luta (guerra ou batalha). Mas, assim como define sua parceira, Neidinha, é o “senhor da paz”, que tem como principal estratégia o diálogo. Ou, como coloca o próprio Almir, a sua guerra é de consciência.

Senhora da guerra

Filha de seringueiros acreanos, a etnoambientalista Ivaneide Bandeira Cardozo, 53, cresceu na floresta amazônica com os vestígios dos índios uru-eu-wau-wau, até então isolados. Ouvia seus assobios, via suas pegadas.

Até hoje Neidinha, como é conhecida entre ambientalistas, segue os passos dessa e de outras etnias em Rondônia, onde coordena a Kanindé – Associação de Defesa Etnoambiental, que atua com plano de gestão ambiental em terras indígenas.

Na infância na mata, onde cutia, macaco e paca eram seus amigos e brinquedos, aprendeu a ler em revistas como “Manchete” e em livros de bangue-bangue, que chegavam por lá vez ou outra, desembarcando num avião.

Nessas leituras, ficava intrigada com histórias em que “os índios, os donos da terra, só se davam mal”. “Pensava: Um dia vou mudar essa história, não é possível ser assim. Sabia que os índios não faziam nada pra gente”, conta Neidinha, que, na universidade, graduou-se em história

Quando os pais decidiram rumar para Porto Velho para que as filhas pudessem estudar, Neidinha sentiu como é que índio isolado se sente quando chega na cidade. Só conhecia barco e avião. Quando viu um carro pela primeira vez, saiu correndo assustada. “Ao sair da mata, acabou minha liberdade”, lembra.

Na escola, logo se juntou ao grupo de teatro. Ao encenar uma peça que falava da migração em Rondônia, não teve dúvida qual personagem queria ser: o índio. “Mas não queria ser o índio que morria no final, não.”

A juventude foi marcada pela arte e pela militância. Aos 18 anos, sobrevoou a capital de Rondônia numa avião providenciado por amigos ricos para jogar versos na cabeça dos moradores. Ainda hoje sua geração se recorda desse dia.

Também ia para a praça só, com placas em protesto contra o desmatamento na Amazônia. “Era a maluca sozinha na praça”, conta, sempre bem-humorada, lembrando de seu estilo “hiponga”.

Nesse período, em 1981, os uru-eu-wau-wau foram contatados pela Funai. Lá estavam de novo os índios que rondaram sua infância bem pertinho de sua casa, localizada em frente à sede da instituição.

“Quando olho para os uru-eu ali na cidade, me sinto como um deles”, conta. “Hoje eu já estou toda misturada, já não sei mais o que sou, perdi a identidade”, completa, refletindo sobre sua trajetória marcada pelo trabalho com diversas etnias, como parintintin, gavião, arara e, principalmente, suruí.

Mochileira e militante

Depois de vivenciar episódios de confronto e denúncia, numa mineradora, na própria Funai e numa ONG em que atua, decide que o caminho é reunir sua turma numa organização independente.

É quando cria em 1992 a Kanindé, cujo nome significa arara-vermelha para o povo uru-eu-wau-wau, que também tinha um importante guerreiro batizado com esse nome.

No início dos anos 90, o escritório da Kanindé cabia na mochila da empreendedora. A moça magricela, de cabelos compridos e pouca roupa andava dias pela mata com um mochilão nas costas. Vivia cheirando a fumaça.

Às vezes, saia em expedição floresta adentro vestida com uniforme de polícia (herança dos tempos em que atuou na corporação e foi expulsa depois de denunciar colegas por corrupção). Era para apreender os madeireiros que ameaçam o território do povo uru-eu-wau-wau. “Prendia os caras e chamava a polícia”, conta rindo. Foi na militância ambiental que conheceu Almir Suruí, liderança indígena com quem diz ter se casado não uma, mas três vezes em cerimônias tradicionais como o Mapimaí (comemoração que celebra a criação do mundo).

O encontro da dupla foi marcado por brigas e divergências no jeito de encarar a “luta” na defesa da floresta. “Eu vinha do front, do enfrentamento; o Almir, do diálogo. Uma vez, numa palestra, eu disse: ‘Aqui estão o Senhor da Paz e a Senhora da Guerra’.”

Na guerra contra o desmatamento, ela já foi alvo de tiros –escapou. Não desiste. “Filho de seringueiro luta desde que nasce”, explica.

Confessa, no entanto, temer pela proteção do Almir quando o cerco aperta, como ocorre nos últimos meses. “Tenho medo, mas também tenho certeza de que vamos vencer. A crença é maior que o medo”, dispara.

Foi com o Senhor da Paz que Neidinha descobriu a maternidade, um sonho que parecia impossível, já que médicos consultados em casamentos anteriores diziam para ela desistir da ideia de engravidar.

Para os suruís, mulher que não tem filhos não tem valor. Weitag Suruí, mãe de Almir, tratou a nora na tradição de seu povo. Nove meses depois, nascia a primeira filha do casal e, depois, a caçula.

Transgressora assumida, Neidinha fala abertamente de seu casamento bem incomum para a sociedade branca. Seguindo a tradição de poligamia de seu povo, Almir é casado com duas mulheres não índias.

“Nessa história toda, a heroína é a Adelaine [a outra mulher de Almir]. Eu e Almir não somos fáceis, a gente acorda e dorme com as questões ambientais e indígenas. É ela quem segura as pontas e tem o pé no chão”, diz, sobre a parceria a três.

A fala diz muito da etnoambientalista, que desde menina sonha em mudar a história, valorizando os verdadeiros heróis.

Galeria

 

Fonte URL: http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/finalistas/2012-almir-ivaneide.shtml

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email

Posts recentes

Ver tudo

Encontro reúne mais de 100 jovens indígenas em Porto Velho

Por Ana Laura Gomes . Entre os dias 12 e 15 de janeiro, Porto Velho…

Movimento da Juventude Indígena participa de intercâmbio com jovens extrativistas do Lago do Cuniã

O objetivo foi promover um intercâmbio entre os movimentos e incentivar a maior participação política…

Edital – Construção de Agroindústria para beneficiamento de castanha

Porto Velho, 27 de Outubro de 2023 COTAÇÃO DE PREÇOS/EDITAL No 10/2023 /KANINDÉ A Associação…