KANINDÉ

Neidinha, a guardiã da floresta

Década de 1990. Neidinha caminha com os colegas pela mata de Guajará-Mirim, em Rondônia, e escuta um assobio. Não sabe de quem parte, mas se lembra do pai. Certa vez, ele associara um barulho muito parecido àquele produzido pelas onças. Naquela ocasião, também lhe pedira para estar tranquila caso deparasse com uma, porque o bicho não costumava atacar. 

O grupo continua seu caminho. No alto de uma cachoeira, o assobio vira um barulho intenso. Uma onça-pintada salta em sua direção. Neidinha grita desesperadamente. Ela teme pela vida, mas não por sua própria. É a onça que não pode morrer. Um dos colegas acerta o focinho do bicho com o facão, outro atira com a espingarda para o alto, só para assustá-lo. “Eu só pensava em fotografar a onça”, conta Neidinha. “Vieram brigar comigo porque não deixei que a matassem. Depois que tudo aconteceu, o medo chegou. Tremi por mais de meia hora.”

Neidinha é Ivaneide Bandeira Cardozo, 57 anos, indigenista que desde 1992 lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, cuja atuação se estende a 52 etnias indígenas. À frente da organização, esteve em expedições para prender invasores de terras e madeireiros ilegais e realizou diversas aproximações com povos até então isolados.

Por incomodar poderosos, foi inúmeras vezes ameaçada de morte. Quando não está embrenhada na floresta – em algumas oportunidades passa mais de 40 dias pelas matas –, vive em Porto Velho, onde cursou História pela Universidade Federal e fez mestrado em Geografia. Casou-se com o cacique Almir Suruí, com quem teve dois de seus cinco rebentos.

Filha de seringueiros, nasceu e passou boa parte da infância em meio à Floresta Amazônica. Aprendeu a ler com livrinhos de bangue-bangue, que adorava, exceto pelo destino fatal dado nessas narrativas aos indígenas e animais. “Ficava muito irritada e falava que, quando pudesse, lutaria pelo direito deles.” Na escola, deu rumo diferente para aquelas histórias. No teatro, transformou os nativos e os animais em vencedores.

Em meados da década de 1970, pintou plaquinhas e fez manifestações solitárias em praças de Porto Velho contra o desmatamento. Na década de 1980, aliou-se à Igreja para que a ajudasse a demarcar terras indígenas e proteger os povos ameaçados pela predatória prática da mineração. Na chefia de um posto da Funai – de onde foi demitida após denunciar esquemas de corrupção –, forjou o destino que culminaria na Associação Kanindé ao final dos anos 1990.

Desde então, vive sob risco permanente por sua dedicação aos povos que aprendeu a amar. “Hoje tem madeireiro e garimpeiro demais em tudo que é terra indígena”, lamenta. “Eles entram, roubam, destroem e pouco é feito para que sejam punidos. Todo mundo que trabalha na Amazônia e faz denúncias corre risco de vida, porque está lutando contra o grande poder econômico. E o Estado está preocupado com a soja e com o gado, não com direitos humanos ou ambientais.”

Em uma das expedições para localizar madeireiros ilegais, Neidinha viveu outra grande tensão. O grupo passava por Corumbiara e pelas fazendas de alguns políticos (“famosos e perigosos, um foi até ministro da Previdência”), quando jagunços começaram a perseguição. Os integrantes deram sorte. Escondidos sob um tronco de árvore, não foram encontrados pelos perseguidores, que, se os alcançassem, acabariam com suas vidas.

Graças ao zelo pela mata, Neidinha foi parar no Palácio de Buckingham. Tudo começou quando, há sete anos, ela proibiu o príncipe Charles, da Inglaterra, criador de uma ONG de proteção às florestas, de entrar nas terras indígenas juntamente com seguranças armados.

Se o nobre príncipe quisesse conhecer aquela área, que confiasse nos indígenas e deixasse as armas do lado de fora, como estipulam as leis. Charles procurou outro canto para ser apresentado aos nativos brasileiros, mas gostou da atitude da moça e a convidou para conhecer a casa da família real inglesa. Durante a visita, Neidinha aproveitou para fazer o que lhe proibiam.

Escondida, porque o registro de imagens é vetado no lugar, tirou algumas fotos do banheiro da mansão, extensivamente decorado. “Eu adoro arte, não podia deixar de fotografar aquelas maravilhas.” Um alento em meio à luta. “As questões indígena e do meio ambiente sempre foram relegadas a último plano em todos os governos, sem exceção”, lamenta.

“Encaram a floresta com o olhar puramente econômico, o que, para mim, denota pouca inteligência. É burrice derrubar a mata, porque isso acaba com a água, por exemplo. Nunca pensaram em como trabalhar com a floresta em vez de destruí-la.”

Fonte: Carta Capital

Neidinha começou a ler com livros do faroeste. Mas não aceitava a derrota do índio
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