KANINDÉ

Índia do AM vence barreira do sexo e se torna pajé

 Há 20 anos, a aldeia Sahu-Apé se instalou às margens do Rio Ariaú, em Iranduba, município a 27km de Manaus. Abrigando 32 pessoas divididas em 14 famílias, a tribo tinha tudo para ser mais uma formada pela migração de indígenas que buscam melhores condições de vida nas proximidades de áreas urbanas, se não fosse um detalhe: é liderada por uma pajé mulher.

Zelinda da Silva Freitas, mais conhecida pelo nome sateré "Baku", é filha de dona Tereza, considerada a matriarca dos Sateré-Mawé que se deslocaram para Manaus e cidades vizinhas no fim da década de 70. A mãe da pajé morreu em 2013 aos 97 anos, e seu corpo está enterrado na comunidade Sahu-Apé. Nascida na aldeia Ponta Alegre, em Barreirinha (distante 331km da capital), Baku foi a única filha de Tereza que desenvolveu a pajelança, dom para a tradicional medicina indígena. Ocupando a posição mais importante da tribo, Baku venceu os preconceitos por ser mulher e hoje lidera Sahu-Apé.

Aos 60 anos, casada, mãe de sete filhos e já com 16 netos, Baku se dedica integralmente aos cuidados com a comunidade. Apesar de hoje exercer a função com facilidade, ela conta que foi necessário tempo para adquirir respeito e ser aceita como liderança feminina. "Até onde sei, o Amazonas tem seis mulheres pajés em todas as tribos indígenas. Ainda são poucas. É claro que no início foi difícil acreditarem, mas não tem como não aceitar. A pajelança é um dom", relatou.

A antropóloga Kalinda Felix, que acompanha os Sateré-Mawé há oito anos, explicou que as mulheres ganharam espaço nas tribos somente no século 20, quando os índios precisaram migrar para a capital por conta de invasões às terras indígenas no interior e falta de recursos nas proximidades das tribos. Elas, segundo a estudiosa, passaram a ser respeitadas devido à sua preocupação em buscar melhores condições de vida nas áreas de economia, educação, saúde e habitação. "Politicamente essas mulheres líderes chamam atenção porque são matriarcas de suas famílias e não desistem de lutar, incentivam os jovens a valorizar a cultura e a mostrar o que são em qualquer lugar. Essas posições sociais aumentam as forças dessas mulheres e elas mostram diariamente que conseguem vencer as adversidades da vida, unir a família, e servem como exemplo para outras mulheres que desejam lutar pelo seu povo", destacou.

Historicamente, de acordo com a doutoranda em antropologia, a etnia é uma das que mais valoriza a figura da mulher na Amazônia. No entanto, esta importância sempre foi ressaltada apenas na mitologia, mantendo somente homens na liderança das tribos. "A figura da mulher aparece como importante na história do guaraná, o mito de origem da etnia Sateré-Mawé, pois a mulher é a que sabe fazer os remédios, conhece as plantas medicinais, sabe rezar. No Ritual da Tucandeira, eles se referem à formiga como sendo a nossa mulher, aquela que nos vacina, que nos livra das doenças, a tucandeira como uma figura feminina. Nesse sentido, a mulher Sateré-Mawé é valorizada pois ela é a guardiã desses segredos. Portanto, as mulheres não são desvalorizadas pelos homens. Elas exerciam o seu papel dentro da sociedade como mães, porém as transformações sociais fizeram com que essas mulheres buscassem outras posições sociais antes ocupada apenas pelos homens", ressaltou.

Forte atuante na defesa da cultura sateré no Amazonas, Baku prova a capacidade de liderança ao tentar driblar o fato de ter a aldeia inserida em contexto urbano para manter os costumes da etnia na tribo. O sucesso é comprovado: enquanto muitas aldeias estão esquecendo os costumes, em Sahu-Apé eles vivem da subsistência e artesanato indígena, mantêm consulta com pajés e continuam realizando importantes rituais, como o da tucandeira. "Para mim é uma cultura que faz lembrar meus avós, aquilo que a gente convive. Nem que eu queira ser branca, eu não vou ser nunca. Eu sou sateré e vou morrer sateré, vivendo a minha cultura, comendo a minha comida, fazendo meu ritual. Para mim é muito importante não esquecer e passar isso para netos, filhos. Eles precisam lembrar que nascemos índios e vamos morrer índios", disse.

O desafio de ser pajé mulher
Firme em seu papel de líder da aldeia, Baku encara a sociedade machista como um obstáculo já vencido. Questionada sobre a importante função de curandeira, ela brinca: "eles tiveram que aceitar o fato de que nasci com o dom, e isso ninguém tira de mim". Para a antropóloga Kalinda Felix, esta postura de Baku foi essencial para que ela passasse a ser tão respeitada. "A medida que a mulher demonstra sua sabedoria, as práticas de cura com sucesso, seu prestígio aumenta e ela passa a ser bem aceita pela sociedade que faz parte", afirmou.

Segundo a indígena, o seu talento foi detectado quando ainda era nova. "Eu vim de uma família de três pajés, e sempre fui muito ligada a eles. Um deles, meu avô, começou a prestar atenção no meu dom quando eu tinha 12 anos. Eu era uma criança muito doente e não queria ser assim. A primeira vez que ele notou foi quando uma menina estava com muita tosse e eu resolvi fazer um remédio. Logo depois ela ficou bem", disse. Porém, o fato de ser mulher interfere ainda em um momento da pajelança: ela não pode exercer seu papel durante o período menstrual, quando a sociedade acredita que a mulher pode panemar a pessoa atendida, ou seja, adoecer ou fazer com que a pessoa fique sem vontade de fazer trabalhos cotidianos. Para os sateré, a mulher precisa de cuidados quando está menstruada, então ela é afastada da função.

Feitos pelos pajés, os medicamentos usados nas aldeias são todos naturais, oriundos de itens encontrados na floresta, como folhas e até animais. O conhecimento, segundo a tradição indígena, vem dos espíritos da floresta. Na comunidade Sahu-Apé, Baku mantém duas farmácias: uma menor, construída nas proximidades das casas, e uma maior, instalada em uma área de mata mais fechada. Esta segunda guarda itens como cabeças de um jacaré-açu de quatro metros, crânios de macaco, e ervas, todos usados na elaboração dos remédios.

Com idade avançada, Baku já prepara o sucessor para assumir a aldeia. Seu filho, Sahu, deve ser o próximo pajé de Sahu-Apé. "Logo cedo notei que o Sahu e outra filha minha tinham o dom. Primeiro conversei com ela, que era mais velha, mas logo me respondeu que não tinha interesse em exercer a pajelança pois é preciso dedicar a vida integralmente à comunidade e ela quer se dedicar aos filhos. Já Sahu ficou feliz e hoje já está aprendendo bem a usar seu dom para ajudar os outros", contou.

Com entusiasmo, Sahu acompanhou a reportagem do G1 durante a visita à principal farmácia da tribo. Ele mostrou os ingredientes dos medicamentos, comentou sobre o preparo, mas revelou que, apesar de saber a importância do cargo que deverá herdar, espera continuar sendo somente mais um membro da aldeia por um bom tempo. "Fico feliz em aprender a usar meu dom e ser aconselhado por uma mulher tão sábia, mas ninguém aqui, nem eu, quer eu que eu assuma tão cedo. Infelizmente serei pajé quando minha mãe morrer, e prefiro que dona Baku continue entre nós por mais tempo. É uma grande responsabilidade substituí-la", finalizou.

 

Fonte URL: http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2014/05/india-do-am-vence-barreira-do-sexo-e-se-torna-paje-eles-tiveram-que-aceitar.html

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